quarta-feira, 13 de julho de 2011

Ser ou ex-ser, que raio de questão.


De todos os sistemas de organização social que o Homem foi instaurando desde o berço da civilização, o que mais me intriga é a condição de ser ex.
O ex é uma espécie distinta de criatura social que foi alguma coisa durante algum tempo e deixou de ser. A parte curiosa é que nem toda a condição social conquistou o direito de se fazer munir deste prefixo. Não se pode ser ex-qualquer-coisa, é necessário que a coisa em si contenha um grau mínimo de dignidade.
O primeiro-ministro que acaba o mandato e perde as eleições, não pode passar ao anonimato. Não volta a ser, pura e simplesmente, o António, o José, ou o Mário. Passa a ser o ex-primeiro ministro, que é uma espécie de despromoção para a segunda divisão de importância social. Uma vez que o foi, sê-lo-á para sempre, de uma forma saudosista. O ex é uma espécie de medalha de participação, uma palmadinha nas costas por ter sido, é uma consolaçãozinha.
Um homem que cumpriu uma pena de dois anos por furto e saiu em liberdade não é considerado um homem livre. Não como era quando usou uma gazua e fez uma ligação directa no Mercedes e se pôs a milhas do local antes que alguém desse por isso. Assim que põe um pé fora da prisão já é um ex-presidiário. Não se pode, de modo nenhum, deixa-lo esquecer de que esteve preso, não vá a doença de Alzheimer habitar nos genes da família. Tem de se marcá-lo. É preciso fazer dele um exemplo. De qualquer forma, ser ex-presidiário é melhor que ser ex-ministro. É como um, bem-vindo de volta, toma lá um exzinho para ver se desta vez te portas bem. O ex do político tem um je ne sais quoi de vai e não voltes. É um pouco como um ex-marido. Um ex num marido é um graças a Deus que já não te aturo, mas levas com o ex ao pescoço para toda a gente saber que és um falhado.
Um ex num marido também serve de garantia de pensão de alimentação. Aquele filho há-de ir para a faculdade antes que o pai gaste o dinheiro todo em casas de alterne. Não se pode ser ex-pai nem ex-filho. É coisa que não acontece. Está para lá do até que a morte nos separe. Quem morre não passa a ser ex-nada apenas está morto, o que é justo. Daí o conceito de eterno descanso, pelo menos no que toca aos ex(emplos). Não existem ex-vivos. No máximo mortos-vivos, que tanto pode acontecer para lá da morte (a quem lhe caiba tais devaneios) como para cá da vida. Ninguém escreve num epitáfio amor saudoso de ex-filhos. Pode-se estar extinto mas a paternidade não se extingue. É coisa eterna e quanto a isso não há contorno. Já o pai pode deserdar um filho, só não pode desertar de ser pai.
E nisto, a Conceição não vai voltar a chamar O António pelo nome, não vá o gajo esquivar-se à contribuição económica do ex-matrimónio. Este talvez seja o caso mais complexo. Um ex-marido é, na realidade, um ex-presidiário e um ex-politico.  Um ex-marido é um tipo que foi digno o suficiente para uma mulher confiar nele a ponto de idealizar um futuro em conjunto mas que a dada altura deixou o barco à deriva. É um gajo que trocou os ramos de flores e os jantares românticos pelos jogos do Benfica e coçadelas nos testículos. Está tanto para o politico que prometeu e não cumpriu, como para o presidiário que, assim que pôde, se pôs a milhas antes que ela desse por isso. Não há salvação desta condição. O António pode casar mais dez vezes, que não deixa de ser o ex-marido da Conceição. Já para a Conceição, o ex antes da mulher quase que não faz sentido. Não se pode ser ex-mulher a menos que  já se tenha sido um homem, que remete para uma questão que não vou aprofundar. Uma mulher é-o desde que tem a primeira menstruação. Um homem só começa a sê-lo quando faz alguma coisa por isso. Só se chega a homem quando alguém diz olha como ele se fez num homem. Uma mulher é ponto final. Um homem tem de dar o corpo ao manifesto antes de o ser. Antes disso é-se um gaiato, um miúdo, vá, no máximo, um homenzinho, quando se quer alertar para o facto de que já não se têm idade para fazer certas asneiras – Vê lá se te portas bem, que já és um homenzinho. Uma mulher já o era antes de tropeçar num homem. É-o desde sempre. O homem, pelo sim, pelo não, chama-se de marido quando se casa, não vá ele ter um ataque de ansiedade e voltar a comportar-se como um puto.
Quando um homem salta o poleiro diz-se que está com outra mulher. Anda a trair a mulher com outra (mulher). E quando tal acontece passa a ser um homem que não presta. Como defesa, argumenta que a mulher (a legítima) se comporta na cama como uma esfinge. Na realidade o que aconteceu é que ela se tornou numa ex-finge, porque, passe tempo o bastante, e a flatulência constante e os roncos ensurdecedores deixam de ser humanamente toleráveis.
O que me incomoda na problemática do ex é que nunca se deixa de ser o que lhe procede ainda que o que proceda a isso se pareça ter evaporado. Um ex-militar vive como um militar que deixou a tropa. Mas quando ingressou passou apenas a ser um militar e não um ex-civíl. Na realidade é um ex-civíl-ex-militar-civíl, mas a vida anterior à vida militar só voltou a ter importância quando a recuperou. De qualquer forma, ainda que neo-civíl, nunca se vai livrar de ser ex-militar, não vão os espanhóis voltarem a entrar por aqui a dentro e vir a dar jeito a ex-periencia.
Um expatriado não deixa de ter pátria. Apenas se encontra impedido de regressar. É um olha pah ainda és português mas ninguém te quer cá. Ser expatriado é como ser patriado outra vez mas em sentido oposto. É ser excluído de ser num sítio para passar a ser no outro.
É tudo muito complexo, ainda que tudo possa ter uma explicação. O que é curioso porque explicar é trazer luz a algo que de alguma forma já se encontrava implícito mas era complicado de ex-complicar. É uma ex-implicação. Alguma coisa que se tornou extinto na nossa obscuridade ao mesmo tempo que ganhou vida para os outros.
Explicitamente, são coisas que me importam. Que as exporte quem quiser.

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